Vilarejo na Groenlândia cercado por neve e gelo

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Com 2.166.086 km², a Groenlândia é considerada a maior ilha do mundo
  • Author, Peter Harmsen
  • Role, Jornalista e autor de 'Fury and Ice: Greenland, the United States and Germany in World War 2'
  • 4 fevereiro 2025, 17:16 -03

    Atualizado Há 3 minutos

Em uma colina acima da catedral de Nuuk, há uma estátua de mais de 2 metros do missionário protestante Hans Egede.

Ele reabriu a conexão da Groenlândia com o norte da Europa no início dos anos 1700, e lançou as bases para o estabelecimento da mais orgulhosa possessão colonial da Dinamarca.

Um dia, no fim da década de 1970, a figura de bronze foi subitamente coberta com tinta vermelha.

Me lembro bem deste dia — eu passava pela estátua todos os dias na minha caminhada até a escola. Passei dois anos morando na Groenlândia enquanto meu pai dava aula de geografia na Faculdade de Formação de Professores de Nuuk.

Era evidente que nem todos, entre a maioria inuíte, estavam felizes com as mudanças que Egede havia levado para a Groenlândia um quarto de milênio antes.

O tilintar das garrafas de cerveja dentro de sacolas plásticas cheias, levadas pelos inuítes para seus minúsculos apartamentos — geralmente muito menores do que aqueles em que nós, dinamarqueses, morávamos —, era um testemunho do alcoolismo generalizado, um dos males que a Dinamarca havia levado para a Groenlândia, em meio a muitas coisas que eram inegavelmente boas: saúde moderna, boa educação.

Mas, fora a estátua coberta de tinta, o sonho de a Groenlândia se tornar independente da Dinamarca estava apenas começando a se manifestar lentamente.

Vilarejo de Kangaamiut, na Groenlândia

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A Groenlândia é um território autônomo da Dinamarca desde que obteve um governo próprio em 1979

Na Faculdade de Formação de Professores, bem ao lado da minha escola, estava se desenvolvendo o mais próximo que a Groenlândia chegou de ter um movimento estudantil radical — alguns jovens da faculdade exigiam que as aulas fossem ministradas em seu idioma nativo da Groenlândia

No fim da década de 1970, a capital passou a se chamar Nuuk, e não mais Godthaab, seu nome oficial por mais de dois séculos.

Perguntado em janeiro se ele descartava o uso de força militar ou econômica para tomar o território autônomo dinamarquês ou o canal do Panamá, ele respondeu: "Não, não posso garantir nada sobre nenhum desses dois. Mas posso dizer o seguinte: precisamos deles para a segurança econômica."

 Mette Frederiksen

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, solicitou uma reunião com Donald Trump

Mais tarde, no Air Force One, ele disse aos jornalistas: "Acho que vamos conseguir", acrescentando que os 57 mil habitantes da ilha "querem estar conosco".

A questão é: será que eles querem?

Enquanto isso, a primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, insistiu que a Groenlândia não está à venda. "A Groenlândia pertence aos groenlandeses", ela disse. "São os próprios groenlandeses que têm que definir seu futuro."

Uma pesquisa com os groenlandeses sugeriu que apenas 6% deles querem que seu país se torne parte dos EUA, com 9% indecisos e 85% contra. Mas, apesar disso, Frederiksen sabe que a questão do que os groenlandeses querem é delicada.

Tradicionalmente, os dinamarqueses se consideram os imperialistas mais bacanas do mundo desde que começaram a colonizar a Groenlândia na década de 1720.

No entanto, esta autoimagem foi deteriorada nos últimos anos por uma série de revelações sobre a arrogância no trato com a população da ilha no passado.

Em particular, houve denúncias de graves injustiças cometidas contra os groenlandeses — não em um passado distante, mas ainda na memória de muita gente.

Entre elas, uma campanha contraceptiva controversa em larga escala. Uma investigação conjunta das autoridades da Dinamarca e da Groenlândia está analisando a colocação de DIU (dispositivo intrauterino) em mulheres em idade fértil na ilha, muitas vezes sem seu consentimento ou até mesmo sem seu conhecimento.

Foi noticiado que isso aconteceu com quase metade de todas as mulheres da ilha em idade fértil entre 1966 e 1970.

Em dezembro do ano passado, o primeiro-ministro da Groenlândia, Múte Egede, descreveu esse fato como um "genocídio puro e simples, realizado pelo Estado dinamarquês contra a população da Groenlândia".

Ele fez a declaração em conversa com a emissora pública Danish Broadcasting Corporation durante uma entrevista sobre as relações entre a Groenlândia e a Dinamarca, de modo geral.

Além disso, nas décadas de 1960 e 1970, centenas de crianças da ilha foram tiradas de suas mães, muitas vezes por motivos duvidosos, para serem criadas por pais adotivos na Dinamarca. Em alguns casos, isso aconteceu sem o consentimento das mães biológicas e, em outros, elas não foram informadas de que teriam sua relação com os filhos completamente cortada.

Isso deixou uma ferida emocional aberta que, em muitos casos, não foi curada décadas depois. Algumas das crianças groenlandesas adotadas conseguiram encontrar seus pais biológicos mais tarde, mas muitas outras, não.

Um pequeno grupo exigiu uma indenização do Estado dinamarquês em 2024. Se eles forem bem-sucedidos, isso pode abrir caminho para um grande número de reivindicações semelhantes por parte de outras pessoas que foram adotadas.

Bandeira da Groenlândia na vila de Igaliku, na Groenlândia

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A Groenlândia já abriga uma grande base militar dos EUA

Iben Mondrup, romancista que nasceu na Dinamarca e passou a infância na Groenlândia, vê os recentes acontecimentos como um alerta brutal para os dinamarqueses, que estavam acostumados a se ver como uma influência benigna na Groenlândia.

"Todo o relacionamento foi baseado em uma narrativa de que a Dinamarca estava ajudando a Groenlândia, sem receber nada em troca", diz ela.

"Falamos sobre a Dinamarca como a pátria-mãe que colocou a Groenlândia sob suas asas e a ensinou gradualmente a se manter em pé. Houve um uso generalizado de metáforas educacionais."

"Nós, dinamarqueses, recorremos constantemente à ideia de que a Groenlândia nos deve algo, pelo menos gratidão."

'A Groenlândia agora cresceu'

Pesquisas de opinião realizadas nos últimos anos indicam um padrão bastante consistente em que cerca de dois terços da população da Groenlândia dizem que querem a independência. Um levantamento realizado em 2019 mostrou um apoio de 67,7% à mudança entre os groenlandeses adultos.

"Na minha opinião, a Groenlândia agora cresceu, e nosso senso de autoestima e nossa autoconfiança exigem que possamos começar a tomar nossas próprias decisões como adultos em pé de igualdade com outras nações", afirmou Jenseeraq Poulsen, diretor da Oceans North Kalaallit Nunaat, uma instituição ambiental em Nuuk.

O rei Frederik, fotografado com a rainha Mary

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, O rei Frederik, fotografado com a rainha Mary, alterou o brasão real para destacar a Groenlândia em dezembro de 2024

"É importante para um país não estar em uma camisa de força", acrescenta.

"Não deveríamos ter que pedir permissão para fazer nada. Você conhece a sensação [quando criança] de ter que pedir algo aos seus pais, e eles dizerem que você não pode? É assim que é."

E, ainda assim, a palavra "independência" pode não capturar totalmente a complexidade dos desafios e das escolhas que a Groenlândia enfrenta, de acordo com Poulsen.

Ele diz que não gosta da palavra, "já que todos são interdependentes no mundo moderno".

"Até mesmo a Dinamarca, que é um Estado soberano, é interdependente... Prefiro a palavra Estado."

Ingredientes para independência

Não se sabe muito sobre a mecânica de como Trump se propõe a adquirir a Groenlândia. Quando ele lançou a ideia pela primeira vez em 2019, disse que seria "essencialmente um grande negócio imobiliário".

Não está claro até que ponto a Groenlândia permaneceria autônoma sob o domínio dos EUA. O mesmo se aplica ao modo como funcionaria seu sistema de benefícios.

Após a proposta de comprar a ilha, Trump agora endureceu sua retórica, se mostrando aparentemente aberto a satisfazer suas ambições territoriais no Atlântico Norte por meios militares.

Donald Trump Jr. tirando selfie com fã

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Donald Trump Jr. conheceu alguns groenlandeses durante uma visita recente — eles disseram diante das câmeras que apoiavam a ideia de os Estados Unidos assumirem o controle do país

A visita de Donald Trump Jr. e de membros da equipe de Trump deu ênfase visual às palavras do então presidente eleito, mas nem todos na Groenlândia ficaram impressionados.

"Isso nos faz bater o pé no chão e dizer: 'Por favor, controle-se'", afirma Janus Chemnitz Kleist, gerente de TI do governo da Groenlândia. "Algumas pessoas que antes poderiam ter uma atitude positiva em relação a uma aproximação com os Estados Unidos começaram a reconsiderar."

Aaja Chemnitz, deputada do Parlamento dinamarquês pelo partido de esquerda Inuit Ataqatigiit, tem sua própria opinião sobre o que precisa ser feito para preparar o caminho para a independência, seja qual for a forma que ela venha a assumir.

Primeiro, ela argumenta que é importante reverter o que ela descreve como uma leve fuga de cérebros da Groenlândia. Segundo ela, apenas 56% dos jovens groenlandeses que estudam em universidades e faculdades na Dinamarca e em outros países retornam após a formatura.

"Não é um número muito alto. Seria bom se pudéssemos tornar mais atraente para eles voltar para casa e assumir alguns cargos que são importantes na sociedade da Groenlândia", diz ela.

Mas, na opinião dela, há também uma questão econômica mais ampla.

Uma aeronave escrito ‘Trump’ na frente pousa em Nuuk, na Groenlândia

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Donald Trump Jr. classificou sua visita como uma 'viagem pessoal'

"A independência política e econômica está interligada", diz ela. "E é crucial que cooperemos com a Dinamarca no desenvolvimento de negócios na Groenlândia, mas também trabalhemos com os americanos na extração de matérias-primas e no desenvolvimento do turismo".

No momento, a economia da Groenlândia depende muito do subsídio pago pelo governo dinamarquês que, em 2024, correspondeu ao equivalente a cerca de R$ 3,5 bilhões por ano.

Como esse subsídio provavelmente vai desaparecer após a independência, um dos desafios mais importantes enfrentados pelos groenlandeses é encontrar maneiras de substituí-lo, explica Javier Arnaut, economista da Universidade da Groenlândia em Nuuk.

"A economia é um dos principais fatores que impedem o movimento em direção à independência", diz ele. "A economia depende do subsídio dinamarquês e, se ele desaparecesse, a Groenlândia teria um grande buraco no orçamento público que precisaria ser preenchido."

"A questão é como. Se a lacuna pudesse ser preenchida, por exemplo, aumentando a receita fiscal por meio de projetos de mineração com novos parceiros, poderia surgir um caminho mais claro para a independência econômica."

O fator de bem-estar

Há outra questão — não menos importante em um Estado de bem-estar social no estilo nórdico, em que grande parte da economia está sob controle do governo — sobre o que aconteceria com todos os benefícios sociais e de saúde que a Groenlândia recebe atualmente como resultado da sua relação com a Dinamarca.

Atualmente, esses benefícios incluem acesso a tratamento em hospitais dinamarqueses.

Pergunte aos groenlandeses se eles querem se separar da Dinamarca, e a maioria dos que dizem que sim tem uma ressalva — apenas se isso não custar a eles seu sistema de bem-estar social.

A questão do que acontece com o sistema de bem-estar social seria particularmente grave no caso de uma aquisição da Groenlândia pelos EUA, já que o Estado de bem-estar social americano não é apenas menor do que o dos países nórdicos, mas também do que o da maioria dos outros países ocidentais.

Donald Trump Jr. em Nuuk, na Groenlândia

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Donald Trump Jr. descreveu sua visita à Groenlândia como um 'dia épico'

Mas nem todos estão convencidos das sugestões de que os pacientes com câncer da Groenlândia, por exemplo, de repente não teriam para onde ir em caso de independência. Pele Broberg, ex-ministro das Relações Exteriores da Groenlândia e atual presidente do partido político Naleraq, cita como exemplo a Islândia, que deixou o reino dinamarquês em 1944.

"A Islândia ainda envia pacientes para a Dinamarca", diz ele. "Eles ainda têm alunos estudando na Dinamarca, e vice-versa. Tenho dificuldade em ver que tipo de obstáculos a Dinamarca gostaria de colocar se decidirmos deixar o reino."

"É uma retórica destinada a nos assustar e nos impedir de discutir a independência", argumenta.

No entanto, alguns groenlandeses acreditam que a verdadeira independência pode nunca ser alcançada devido a essas mesmas preocupações. "O tipo de independência que você vê em países como Dinamarca, Bélgica ou Angola nunca vai acontecer aqui", avalia Chemnitz Kleist.

"Com uma população tão pequena, parte dela com pouco nível de instrução, e com um sistema de bem-estar complexo que gostaríamos de manter, nunca poderemos nos tornar independentes da forma como a palavra é normalmente entendida."

As táticas de Trump e o caso dos EUA

Todas essas questões vêm sendo discutidas há anos, mas de repente ganharam um novo senso de urgência com a aparente tentativa de Trump de obter o controle da Groenlândia.

Mas, independentemente de quem estiver na Casa Branca, a questão é se os groenlandeses veriam algum benefício em aumentar os níveis de cooperação com os Estados Unidos — e, em caso afirmativo, até que ponto?

"O projeto nacional da Groenlândia consiste em dispersar a dependência da ilha para ter o maior número possível de relações com o mundo exterior", diz Ulrik Pram Gad, pesquisador do Instituto Dinamarquês de Estudos Internacionais e especialista na região do Ártico.

É neste contexto que alguns groenlandeses estão se entusiasmando com o modelo de uma "livre associação" com a Dinamarca ou com os Estados Unidos — replicando um acordo flexível semelhante entre os Estados Unidos e algumas ilhas do Pacífico.

"O problema é que a Groenlândia se sente engolida pela Dinamarca", diz Pram Gad.

"Ela quer se sentir menos restrita e menos dependente de apenas um país. A livre associação não tem tanto a ver com "associação", e mais com "livre". Trata-se de ter sua própria soberania."

A ameaça de Donald Trump de assumir o controle da Groenlândia pode ter sido inesperada, mas com a viagem a Nuuk, sua equipe estava bem ciente de que suas preocupações com a segurança chegam em um momento em que muitos groenlandeses estão pensando em seu futuro.

"Nos últimos anos, surgiram todas essas histórias, e colocaram a narrativa da modernização sob uma luz diferente. Toda a ideia de que a Dinamarca estava buscando um projeto altruísta na Groenlândia foi questionada", explica Iben Mondrup.

"O projeto que foi dito aos groenlandeses como sendo para o seu próprio bem, na verdade, não era bom para eles. Isso dá origem a todos os tipos de pensamentos sobre o status dos groenlandeses dentro do reino dinamarquês. Isso adiciona combustível às críticas que se desenvolveram na Groenlândia nos últimos anos sobre a ideia de uma comunidade com a Dinamarca."

Noruega, Islândia e Canadá

Mas se não for a Dinamarca, e não for os Estados Unidos, a quem mais a Groenlândia poderia recorrer? As pesquisas sugerem que a maioria dos habitantes da ilha gostaria de intensificar a cooperação com o Canadá e a Islândia. Broberg, presidente do partido Naleraq, gosta da ideia — e também inclui a Noruega na lista.

"Temos mais em comum com a Noruega e a Islândia do que com a Dinamarca", diz ele. "Todos nós três temos uma presença no Ártico, diferentemente da Dinamarca. O único motivo pelo qual deixo em aberto a possibilidade de uma livre associação com a Dinamarca após a independência é que isso pode tranquilizar alguns gronelandeses, pois eles estão acostumados com o relacionamento com a Dinamarca."

Ainda assim, a pergunta é: será que o Canadá e a Islândia gostariam de assumir a tarefa de fornecer os benefícios sociais que os groenlandeses almejam? A resposta quase certamente seria não.

Desta forma, o futuro que se apresenta aos groenlandeses é ao mesmo tempo empolgantemente aberto e deprimentemente limitado.

Peter Harmsen é jornalista da Weekendavisen. Ele passou um tempo na infância morando na Groenlândia.